domingo, outubro 18, 2009

De Pontos e de Vida


“ Eu vi a cara da morte e ela estava viva!”. A composição que Cazuza fez nos anos 80 foi a primeira coisa que me veio à mente quando olhei na TV aquele tanque escuro da polícia carioca pelas ruas da cidade. Certamente não há coisa mais semelhante para representar uma coisa tão terrível e apavorante quanto essa. Da mesma forma, a imagem dos casebres pendendo do morro, em construções irregulares e amontoadas de tijolos à vista onde, um sem número de vidas humanas habitam, revelou a parte feia e suja de uma cidade, cantada em prosa e verso, tão bonita por natureza. A alma humana, inocente e bela, divide espaço por ali com a podridão e criminalidade da marginália fora da lei. Gente humilde, inocente, trabalhadora, acaba sofrendo e pagando o preço de uma conta que não é sua.


Mas a parte podre da vida não vive somente em favelas. Aqui, bem mais abaixo, na planície verdejante de nossos jardins, nas nossas casas limpinhas e bem cuidadas, de quintais arrumadinhos ou em algum quarto de apartamento, dos centros de nossas cidades, reside, bem nutrida e acalentada a alma decrépita e pútrida de quem, a cada dia, também colabora para o aumento desenfreado dessa dívida social. No polêmico filme “Tropa de Elite”, talvez ninguém tenha dado tanta importância para a cena em que o Cap. Nascimento, ao abordar diversas pessoas dentro da favela, passa uma lição num jovem que se apresenta como “estudante”, com a intenção de se eximir de qualquer culpa. Na verdade, essa bela passagem precisava ser melhor refletida por todos. Assim, também como no filme “Meu Nome não é Johnny”, a realidade que nos cerca se mostra muito viva. Porém, às vezes estamos no quarto de cima e não conseguimos perceber- e muitos não querem admitir, outros não conseguem enxergar- que a festa no andar de baixo não é uma simples reunião dançante; São os meus colegas de faculdade, os colegas de trabalho, os jovens da classe média e também os da periferia; São os filhos bem nascidos de pais muito ocupados ou alienados; São os filhos abandonados; São os profissionais de todas as áreas e inclusive os da lei; São pessoas reais, muitas não conhecidas pessoalmente, mas pela história verídica de algum amigo; São artistas, intelectuais, políticos, que ao chegarem ao hotel de alguma cidade, como primeira providência é a de saber onde é “o ponto” ou quem é a pessoa “confirmada” que poderá conseguir a coisa certa; São esses, os meus, os teus e os nossos “conhecidos”, que muito colaboram para deixar a cara da vida com a cara da morte.


Nesse sentido, a feiúra do Rio de Janeiro mostrou a sua cara dessa vez e de vez. Pela televisão, nós vimos a cara da morte e ela era feia e estava viva. Aqueles que ainda não sabiam, agora descobriram que “os pontos” da cidade maravilhosa não são somente os turísticos. E pelo que se percebeu, pela magnitude dos estragos realizados, pode-se entender a importância e a necessidade em manter eles sob domínio e controle. O poder, demonstrado nas ações dos traficantes, no sentido de apoderarem-se de territórios específicos de seus rivais, é algo sem precedentes na história desse país, além de ser um momento de preocupante expectativa no que tange ao futuro de todos os cidadãos, não somente cariocas, mas de todo brasileiro que vive à mercê da criminalidade crescente nas grandes cidades. O que mais se pode esperar depois de já ser possível derrubar um helicóptero, e da polícia, ainda por cima?! O que mais poderemos esperar dos nossos “confirmados”? A realidade está mostrando o que realmente eles podem entregar. Tudo o que vem junto com o simples “baseadinho”, com o “papelotezinho”, com o mais recente “crack”, com a nossa condescendência com o colega, com o filho, com o parente, com o vizinho, com o amigo do amigo, com o cunhado do tio do conhecido, com o nosso artista preferido, com o nosso ídolo, o nosso “pop star”: Uma encomenda que tem um preço muito mais alto do que sonham algumas vãs filosofias.


Eu vi a cara da morte, e ela está viva! Mas ela não está, somente, na face escura e sombria dos casebres feios e descompostos nos morros do Rio e de qualquer cidade conhecida nossa. Não está, somente, nas mãos perversas dos traficantes e criminosos que se organizam e se preparam, cada vez mais, para atender a demanda que, sem sombra de dúvida é a origem dessa bola de neve que parece não ter mais fim. É importante que se reflita e se atente para esse enorme crediário sem avalista, onde o fiador é a própria vida humana. Não só a vida dos nossos próprios “conhecidos”, que dormem em berço esplêndido, nesse momento, mas a nossa própria, almas humanas, que necessitam desse mesmo espaço de convivência. A verdadeira questão das drogas e dos traficantes, assim como o contrabando, o comércio ilegal de qualquer coisa que seja, não reside no insistente e cansado- e muitas vezes inútil- combate a essas práticas. O “ponto” e o “cara confirmado”, que estão e sempre estiveram entre nós, matando aos poucos e de todas as formas a vida, terão sempre os seus substitutos, enquanto existirem, no andar de baixo, na festinha inocente, no passeio do parque, no interior de muitos edifícios luxuosos, algum “conhecido” nosso disposto a procurar por eles.

Alvorada, 18 de Outubro de 2009.
João Cláudio Amaral Marques

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